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USAR MÁSCARAS PARA LIBERAR OS OLHOS

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O impensável se tornou óbvio. No mesmo dia em que iniciamos o OUTRO Festival, completamos oficialmente 1 ano de pandemia. Ou o primeiro? A condição imposto pelo risco do querer viver – talvez nunca tivemos tanto perigo ao desejar algo a nós mesmos -, cada um passou a lidar com o cotidiano como pode ou conseguiu. Muitos, sem direito de escolha, sobrevivem pela sorte, enquanto permanecem nas ruas e trabalhos para sobrevivência; não apenas a deles, mas a dos demais.
A crueldade do valor dado ao corpo do Outro, sustentação da inércia protetiva de parte da sociedade, atinge dos profissionais de saúde esgotados e sucumbindo ao esfacelamento psicológico até os entregadores e aqueles em constante deslocamento pelas ruas e espaços, expostos ao vírus perigosamente pelo excesso de circulação, transportes lotados e convivências desorganizadas. Um ano depois, o Outro qual olhamos também diz respeito aos que, sem tempo, sequer terão quando e vontade de estar aqui conosco.

 

Nada comprovou, até aqui, a pandemia ser uma catástrofe planejada.
Ao menos, não na proporção qual se realiza. Isso não significa, porém, que as estruturas políticas e econômicas deixariam de aproveitar a oportunidade histórica aberta ao surgimento de outra lógica de controle das mentalidades e comportamentos. Em ensaio recente, Giselle Beiguelman discorre com clareza sobre a metodologia há tanto guardada para o seu melhor uso. A nova face biopolítica difundida, explica, atua sobre os corpos sem necessitar de coerções e qualidades diversas de dor. Há nela uma administração do medo, ou, na palavras recuperada de Yuval Harari, ‘vigilância subcutânea’, posta que tornada algorítmica a partir do mapeamento e rastreamento de nosso próprios equipamentos, sobretudo os portáteis. Uma das consequências da digitalização do indivíduo exponencial desse instante.

 

Precisaremos de tempo para entendê-las, claro, contudo, de tempo para percebê-las em suas variações. Já com uma certeza: serem os corpos as senhas ao existir social na distorção proposital denominada por novo normal. A expressão adotada de imediato esconde como manipula a expectativa e esperança. Novo, feito acontecimento capaz de superar o trauma, abandonando tudo mais ao passado; normal, como se possível recuperar os mesmos valores, estruturas, organizações sociais e culturais definidos pelo neoliberalismo de outrora. Portanto, trata-se do novo e normal improváveis. Nem tão novo diante quem nos conduz e manuseia, nem tão normal, dada as condições de atuação coletiva.

 

O corpo senha diz respeito ao seu estado de aceitação. Sem febre, sem sintomas, sem perigos aos demais. Corpos entendidos saudáveis. O Outro aceitável apenas quando e se perfeito. E nenhuma imagem explicita mais objetivamente, como a trazida por Giselle, do que o termômetro revólver. Apontado para nossas cabeças, o objeto tornado utensílio, está cada dia mais presentes, em mais ambientes, em mais momentos, em mais justificativas. Feito a eliminação simbólica de quem se é em nome do bem comum. O corpo saudável é sobretudo padrão aos interesses de quem o organiza. E também a morte do Outro enquanto alguém particular. Um gesto imagético e performativo pelos quais os princípios do Individualismo Radical apontado por Marshall Sahlin, ao analisar antropologicamente a resposta da Direita
ao contemporâneo em seu determinismo individual: suprimindo
o social e o cultural.

 

No outro ângulo, a perspectiva trazida pela Leviantanologia, assim denominada pelo intelectual, dispensa o sujeito entendendo-o somente uma categoria mais da totalidade sociocultural. Um sujeito abstrato e ideal, possuidor dos fins sociais sob a forma de seus próprios fins privados, é a resposta dada pelo determinismo cultural. Não tão distantes, ambos provocam sua nulidade. No entanto, Marshall olha o sujeito como única coisa substantiva a ser considerada nesse jogo entre sociedade e indivíduo. Assim, olhar ao Outro pode ser um movimento de insurgência silenciosa: reconhecê-lo enquanto sujeito a partir de sua participatividade e pertencimento comum na cultura e, por conseguinte, no entendimento sobre como intervém sobre o civilizatório.

 

Se não podemos estar nas ruas, e não poderíamos; se o olhar perdeu o lugar de liberdade que já possuiu, como afirma Giselle Beiguelman; é preciso nos perguntarmos quais meios para subverter essa condição ainda estão acessíveis. Para além das políticas e redefinições estruturantes da sociabilidade, uma vez serem dinâmicas complexas dependentes de muitos vetores, um convite pode sim criar ruídos mais íntimos e transformadores: a experienciação estética a partir do uso inesperado da linguagem, especialmente quando não determinista. Oferecendo ao Outro acesso a arte, pode-se ampliar suas sensações e percepções sobre o real; abre-se pensamentos: cria-se deslocamentos emocionais. E, sendo tudo isso materialidade física experienciada somente individualmente, ou seja, no corpo do sujeito, o convite é também algo mais: para ser Outro nele mesmo e Outro ao mundo.

 

Um ano depois, a pandemia moldou a vida e nos fez diferentes. Agora é a vez da arte se apropriar dessa estratégia modificando o olhar, o sentir, a fim de trazer-lhe novamente liberdade pela qualidade da sua não decodificação biopolítica. Entregar-se a isso, permitir-se tanto é especial à afirmação de Marshall sobre a relevância do sujeito ao futuro em qualquer análise histórico-cultural que pretendermos erguer. Trata-se do que queremos à memória: olhar aos acontecimentos como quem esteve perdido em suas armadilhas ou como quem dinamitou as tentativas de controles tornando o corpo, os olhos, o sentir algo não tão facilmente mapeável e rascunhável. Um sujeito que não é nem exatamente novo e muito menos normalizado. E, ainda assim, diferente e enigmático. O sujeito, percebido na potência de sua singularidade em multidão, pode vir a ser uma espécie de pandemia aos sistemas. E a arte é, cada vez mais, fundamental ao surgimento disso.

Bom festival a todes.

RUY FILHO

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